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De Repente... Nos 30!

De Repente... Nos 30!

23 de Julho, 2020

Gostar de Amália, cantar Amália e ouvir Amália como se a tivesse visto ao vivo

Maria Juana

Não me lembro da primeira vez ouvi a voz de Amália. Foi, talvez, na rádio ou na televisão, como o eram as primeiras vezes a ouvir tantos outros artistas, sobretudo num carro onde só se ouvia a Rádio Renascença. Lembro-me vagamente de saber que tinha falecido, no sururu que gerou, dos rostos consternados de familiares que tinham crescido com a sua voz.

Por algum motivo, associo sempre muito Amália à minha avó. Ambas terminaram a escola mais cedo o que queriam e tinham capacidade para. Ambas viveram sobre os ditames da ditadura (se bem que a minha avó preferiu ser um pouco mais política). E se Amália não conhecia a minha avó, esta última parava quando a ouvia cantar, olhando, respirando, absorvendo cada palavra e sofreguidão como se fossem suas. Não suportava ouvir Mariza, porque dizia que não chegava aos seus calcanhares  por muito que tentasse (e aí, cresci a concordar). Os discos estavam guardados religiosamente e, apesar de nunca ter testemunhado ou de me ter sido contado, acredito que volta, não volta, ainda olhasse para a aparelhagem disfuncional com vontade de os pôr a tocar.

Não tenho como confirmar, mas tenho a voz de Amália para continuar a criar estas pequenas fantasias. Talvez por ser eu própria uma criança levada para o drama e para a fantasia, o Fado sempre me fascinou. Comecei a ouvir com regularidade ainda no Secundário, a fase em que mais música consumi e descobri, numa sofreguidão em ouvir todos os géneros, estilos e artistas. Apesar de o Fado não ser um gosto comum para alguém naquela idade, pôr os auscultadores e mergulhar naquele estado de paz eram momentos meus, de descoberta e tranquilidade.

Talvez só me tenha apercebido da sua dimensão também nesta altura. Todos crescemos, a bem ou a mal, com a sensação de endeusamento de algumas personalidades que todos dizem ser os maiores de Portugal, como Eusébio e a própria Amália. Mas não é até crescermos e consumirmos que percebemos a sua importância, o seu significado para um povo que tinha poucas vitória e alegrias.

Amália, como Eusébio, foram símbolos de uma época em que as grandes figuras culturais eram um maior escape do que qualquer uma pode ser hoje em dia. Falamos de um tempo em que as escolhas culturais eram tão limitadas que uma mulher do povo, pobre e comum, consegue tornar-se uma diva de um país inteiro, tinha um peso muito maior do que apenas se transformar na inspiração para atingirmos os nossos sonhos. Era a liberdade de sair, de ser alguém, de crescer e cantar; de uma mulher conseguir atingir o estatuto de homens.

Claro que não pensava em nada disto nas primeiras vezes que ouvi a voz de Amália. E por muitos anos que passem, ainda não consigo explicar por palavras o que sinto... Enquanto escrevo este texto, oiço a sua voz; a pele arrepia; fecho os olhos e o coração quase para quando sobe de tom. Expressar isto por palavras? Venha todo o engenho do mundo, não consigo.

De Barco Negro a Estranha Forma de Vida, as suas palavras quase se tornam minhas. Entranham-se na minha pele e sinto os arrepios de saber que são poucas as letras que explicam a inquietação e ansiedade que venho a testemunhar em mim.

Se uma máquina do tempo me permitisse viajar e visitar algum momento do passado? É muito claro: procurava a minha avó e íamos ouvir Amália ao vivo.

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